Diálogo I

Entre esquinas e tropeços, lá vou eu à padaria como de costume para comprar R$ 2,00 reais de pão francês e mortadela para tomar café da tarde com a vó. No meio do caminho... Quem eu avisto de longe? Seu Mário. É um senhor na faixa dos seus 60 anos, ele sempre fica na praça sentado jogando damas com seus amigos ou jogando conversa fora. Volta e meia a gente troca um dedin de prosa. E eu gosto, sabe? Ele é bem esperto e me conta sobre as suas histórias divertidas de vida. Às vezes são um pouco tristes, ele é sozinho, não teve filhos e sua esposa falecera há um pouco mais de 1 ano. Além disso, ele sempre tem ótimos conselhos. Apesar de ter que levar o pão, preciso desabafar com alguém hoje e sem dúvidas ele seria uma boa pessoa para isso, vou aproveitar que ele ainda tá sozinho.

- Oi, Seu Mário, como o senhor tá? Cadê os meninos para jogarem com o senhor?

- Boa tarde, minha filha, eu estou bem e você? Bondade sua chamar meus amigos da terceira idade de “meninos” (risos). Todos já não são chamados assim há alguns anos. Que carinha é essa hoje?

- Aaah... Sabe, Seu Mário, às vezes penso se não seria mais fácil fechar meu coração para alguns sentimentos, tentar evitar algumas feridas, entende? Tá doendo aqui de novo.

- Eu entendo sim. Mas se fechar para as feridas é também se fechar para o que há de bom. Não conseguimos apenas isolar a dor. Quando evitamos a dor, quando suprimimos em nós a dor, na verdade estamos nos tornando menos sensíveis tanto para o que gera desconforto em nós, quanto para as coisas nos trazem prazer. Algumas vezes pensei assim também… Mas acho que sentir nada é pior do que ter episódios ruins entre alguns episódios bons.

- Talvez sim. Não… Com certeza sim. Mas como podem algumas pessoas conseguirem agir assim com tamanha facilidade? Parece fácil olhando daqui, sabe?! Fingir que não sentem… Ou será que realmente não sentem? São tantas questões, eu fico muito confusa. 

- Eu acredito que quando alguém faz isso de se fechar sentimentalmente, faz sem saber o que está perdendo. Faz sem saber que dor e felicidade são dois lados da mesma moeda e são indissociáveis. Uma outra forma pela qual isso acontece é quando a pessoa se encontra em um momento de dor tão intensa e que por vezes parece que não vai passar, que opta em pagar o preço e se livrar de ambas as coisas em nome de não mais sentir aquela dor que causa tanto sofrimento. Uma dúvida minha, e comum na minha idade, é quanto a solidão. Inevitavelmente as pessoas próximas a mim irão morrer, digo isso por experiência, ficarei por vezes sozinhos. Será que eu, ou alguém, realmente está pronto para a solidão? E se sim, por que a evitamos?

- Rá. Essa é fácil. E Tom, muito sabido, já dizia: "É impossível ser feliz sozinho". Somos retalhos de todas as pessoas que passam por nós. Todas, de uma forma ou outra, constroem o que nós somos. A solidão não dura para sempre, é efêmera, passageira. Não tem como estarmos prontos para algo que na realidade não existe. Algumas pessoas morrem, mas outras tantas nascem na nossa vida. O senhor, por exemplo, qual o maior tempo sozinho que já passou? 

- Antes de Júlia partir, acho que nem um dia inteiro. Depois disso, dois dias talvez, menos ainda se contar que uma ligação de celular eliminou a minha solidão por vezes. Vendo melhor agora, de fato a solidão não existe, mas a sensação algumas vezes permanece. Como os adolescentes que não se encaixam nos padrões existentes entre os outros adolescentes de sua escola. Essa sensação de não pertencimento, de não ser compreendido e nem escutado, parece ser algo comum, por mais que a internet hoje tenha encurtado distâncias e feito com que pessoas com interesses iguais ou parecidos possam se reunir, ainda existe uma sensação de desconexão. De onde acha que vem isso?

- Acho que vem da busca por aquilo que realmente somos. Quando adolescentes queremos respostas rápidas, exatidão, que tudo faça sentido, todas as sensações estão em erupção. E na realidade, com o passar do tempo e mais tranquilidade, percebemos que a maioria das coisas não fazem sentido. Talvez seja isso, sabe? Buscamos resolver nossas questões a todo tempo. Tudo precisa de um motivo ou explicação. E esquecemos de só sentir. 

- Mas não é assim para todo mundo. Mesmo quando adultos ainda existem essas pressões por certos padrões e para nos encaixarmos neles. Mesmo depois do fim da adolescência, ainda vejo pessoas em uma luta diária por atingir padrões que não são reais. E não vejo isso como apenas uma questão de falta de maturidade, é bem verdade que isso também é um fato social. Os padrões mudam e tem mudado com o tempo, mas a exclusão dos que não se encaixam, ainda é algo atual. Você acha que caminhamos para uma época, quer seja daqui a mil anos, uma época sem padrões, onde todos são aceitos tal como são?

-  Olha... Pra ser sincera, acredito que não. Como o senhor mesmo disse, padrões mudam e continuarão mudando. Mas… Evitar sentimentos seria um tipo de padrão, então?

-  Acredito que sim. O ritmo da mudança, na atualidade é algo veloz, menina. Você baixa uma atualização hoje para o seu celular e 7 dias depois tem outra, 15 dias depois tem uma outra atualização, que infelizmente o seu celular antigo não é compatível, então você é obrigado a trocar de celular. O que seria de mim se não fosse você me ajudando com essas coisas? As trocas são o padrão da atualidade, trocamos de casa, trocamos de carro, trocamos de cidade, trocamos de emprego e trocamos de relacionamento com muita velocidade. E tudo isso requer desapego. A velocidade das trocas requer praticidade e desapego e sendo assim não nutrimos o suficiente os sentimentos, não criamos vínculos profundos.

- Eu nunca gostei de seguir padrões. Tá aí mais um que quero passar longe. O senhor está certo. Evitar sentir é se fechar para o que há de bom. Não quero só molhar os pés no mar da vida, quero mergulhar, ir até o fundo. Nas profundezas que podemos ver os seres mais bonitos, dizem. São belezas ímpares, que não somos capazes de encontrar na superfície. Definitivamente não quero me poupar disso.

- Está aí, definitivamente é algo que eu gostaria de ouvir mais vezes. Mas estamos preparados para ir tão fundo? Um mergulho até as profundezas dos oceanos não é algo fácil. É preciso estudo, planejamento, preparação e ter os equipamentos certos e de qualidade para que se possa ir o mais fundo possível. Em se tratando de relações humanas, não é muito diferente. É preciso tempo, dedicação e atenção para se atingir tal profundidade também. Estamos prontos para isso?

- Eu vou refletir sobre isso aí, Seu Mário. Deixa eu ir lá, que a vó tá me esperando. Até a próxima. E obrigada por sempre, viu?!

De nada, minha filha. Na verdade eu quem agradeço, suas perguntas e o seu jeito de ver as coisas sempre trazem um pouco de doçura para as reflexões desse velho aqui. Até a próxima e juízo, menina.

P.s.: Mário acabou se tornando uma mistura de realidade e ficção. E o Mário real criou junto comigo esse diálogo aqui. 

Comentários

Mell disse…
Que lindooo, quanta sabedoriaa em um texto e em autores tão novos ;)*

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